Aqui você  encontrará dados de minha biografia, começando por uma cronologia, com informações pontuais, quase ano por ano, desde os tempos do grupo primário até os dias atuais.. Em seguida, seguem alguns textos de períodos distintos de minha vida. Os textos são mais  narrativos e romanceados, embora tudo que aí está escrito passou pelo crivo da sinceridade.  
     
 

CRONOLOGIA
Anos a fio...

1949 – nasci em Nova Granada, pequena cidade paulista
1954 – matriculado no Jardim da Infância
1959 –presto exame de admissão para cursar o ginásio
1964 – termino o curso ginasial e começa o Curso Normal (formação para o magistério)
1967 – formo-me professor primário
1968 a 1970 – Curso Pedagogia na UNESP de S.J.do Rio Preto
1966 a 1970 – escrevo semanalmente uma coluna no jornal local  A TRIBUNA
1966 a 1970 – trabalho na emissora de rádio local em diversas funções (produtor, discotecário, locutor, etc)
1970 – publico primeiro texto em antologia universitária
1971 – mudo-me para São Paulo
1971 – inicio no magistério como professore de Educação Artística
1971 – Inicio o curso de Letras na Universidade S.Marcos
1972 – efetivo-me, por concurso professor a rede municipal de ensino de SP, onde faz carreira e aposenta-se como diretor de escola
1974 – caso-me e os filhos nascem Liza (1975), Kiko (1978) e Paulo (1981)
1975 – inicio carreira de professor de Português
1977 – ingresso no mestrado na Fac. Educação da USP, na área de Didática
1979 – publicomeu primeiro livro Gabriel Ternura, pela Edições Loyola
1979 até hoje –continuo escrevendo e publicando livros, textos, poemas (são mais de setenta livros publicados, alguns fora de catálogo, em literatura infantil e juvenil, livros didáticos e de cidadania). A produção não para, inclusive com muitos textos inéditos aguardando publicação.
1975 – começo a trabalhar na área de Currículos da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo
1977 a 1985 – breve carreira de professor de Português da Rede Estadual do Estado de São Paulo. Desisto por causa das péssimas condições de trabalho nesta rede.
1985 – ingresso como diretor de escola, por concurso, na Rede Municipal de Ensino
1981 a 84 – colaborador do suplemento Folhinha de S. Paulo, escrevendo pequenas histórias, de onde saem alguns de seus livros e sucessos, como o País dos Avessos e o Tesouro Perdido o Gigante Gigantesco
1983 a 1985 – coordeno equipe que dá as caras ao maior e mais longevo programa de leitura em redes oficiais, ainda hoje em prática: Programa de Salas de Leitura das Escolas Municipais de São Paulo
1983 até hoje – dou palestras e consultorias sobre currículo de Língua Portuguesa, sobre Incentivo à leitura e criação de programas de incentivo à leitura. Assessora diversas secretarias de educação de municípios e estados.
1987 – 1988 –  afastado do cargo de diretor de escola e encostado sem função definida pelo ex-prefeito Jânio Quadros, por ter liderado protestos e greve contra uma das piores administrações da educação municipal.
1989 a 1992 – assessor do Departamento de Orientação Técnica da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, gestão Paulo Freire/Mário Sergio Cortella
1992 – publico em parceria com Antonio Gil Neto o livro Brado Retumbante, com quarta capa de Paulo Freire, pioneiro na forma de relatar o cotidiano da educação
1994 – o livro Memórias da Guerrilha Imaginada, Editora Atual,  recebe prêmio de melhor texto juvenil da UBE do Rio de Janeiro
1997 a 1999 – faço mestrado na ECA-USP na área de Comunicação e Educação
1998 – publico coleção de livros didáticos de Língua Portuguesa (Nova Expressão), pela Editora FTD, em parceria com Antonio Gil Neto, seu parceiro em outras obras de literatura.
1998 – aposento como diretor da Rede Municipal de Ensino
1999 e 2000 – exerço o cargo de diretor acadêmico de faculdade da rede privada
2001 – inicio nova atividade, como assessor de vereador, na Câmara Municipal de São Paulo
2005 a 2007 – Faço parte o grupo que criou o Programa Prazer em Ler, para o CENPEC e Instituto de Educação da rede de lojas C&A, criando o programa de formação, atividades paralelas, textos de orientação e publicações.
2007 – publico Cartas Marcadas, em parceria com Antonio Gil Neto, um relato forte, bonito, sensível e bem próximo da realidade da descoberta da homossexualidade de um garoto.
2007 – assumo a assessoria parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo, no mandato do deputado estadual Carlos Giannazi
2004 até hoje: publico livros com temas de cidadania e comportamento social. A coleção Conversas sobre Cidadania, em 2014, renova-se e se amplia.
2014 – continuo trabalhando na assessoria política, escrevendo, dando palestras e entrevistas e participando de eventos ligados ao livro e à literatura, sempre que convidado (feiras, bienais, festas literárias, debates). Mantém uma coluna virtual no blog da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – Regional São Paulo, instituição que ajudei a fundar e da qual fui representante regional no estado.

 
     
 

O JARDIM DA INFÂNCIA E O PRIMEIRO LIVRO DE LEITURA

Eu nasci em uma pequena cidade do interior do estado de São Paulo, chamada Nova Granada. Isso faz tempo, tanto tempo que o próprio tempo se esqueceu de anotar o tempo. Mais de sessenta anos, com certeza. A cidade, Nova Granada, continua no mesmo lugar e ainda pequena. Algumas ruas a mais, um ou outro bairro, algumas centenas e moradores a mais, mas continua quase igual. Uma igreja católica no centro da cidade, a praça da matriz e a praça central, uma rodoviária antiga, a sede da prefeitura e a câmara municipal no bairro de São Benedito, bairro onde a cidade nasceu, ao lado da capelinha ali existente. Mais abaixo um pouco, chegando-se lá pela Avenida da Saudade, o único cemitério da cidade, com os primeiros túmulos datando do início do século passado.

Passei minha infância toda morando em uma chácara, afastada do centro a cidade. Íamos ao centro apenas em ocasiões especiais, como, por exemplo, visitar meus avós, tomar sorvete e eventualmente ir ao cinema nas sessões de domingo à tarde para assistir filmes do Mazzaropi ou para acompanhar o seriado (forma de filme pioneiro das atuais séries) do Zorro ou do Capitão Marvel, meu herói, ou do Fantasma... Como voei, feito um capitão marvel da periferia, com pedaços de pano amarrados ao meu pescoço. Imaginação liberada, voei mesmo, sem sair do chão, em inúmeras aventuras. O quintal da chácara e a rua eram as minhas referências territoriais, onde tudo acontecia, onde as turmas de amigos se formavam, onde os jogos rolavam, onde as descobertas das coisas do mundo iam se fazendo. Nada podia ser mais interessante do que o fim de um dia, depois de tantas coisas acontecidas, e sob o olhar vigilante da minha mãe, tomar banho de água quente, esquentada no fogão a lenha e depois alçada ao chuveiro de latão suspenso em uma madeira no pequeno e improvisado banheiro. A água quente descendo sobre o corpo era o prazer dos prazeres no fim do dia. Depois disso, a comida e a cama e os sonhos.

Fui colecionador de bolinhas de gude, meio campeão nesse jogo, juntando as esferas de vidro de todos os tamanhos e cores: o bolão, o miquinho, a preferida, a rajada, a furta-cor...Também colecionei gibis, influenciado pela coleção de uma revista chamada Grande Hotel, colecionada por minha mãe. Nesta coleção não avancei muito.
Como filho de chacareiro, tive direito a vários cachorros, a um cabrito e a cavalos. Desses, me lembro da cachorra Cigana, minha paixão canina, que acabou presa da hidrofobia e me mordeu, passando para mim a doença da raiva. Entre os cavalos, minha preferida foi a égua alazã que também se chamou Cigana. Andava nela sobre o seu pelo, sem arreios ou rédeas. Éramos parceiros, um pensamento só, eu imaginava.

Outra lembrança boa desta época são as frutas. Tínhamos quase todas no quintal e no terreno da chácara: laranjas de vários tipos, caju, abacate, jaca (uma das frutas mais belas da natureza, por dentro e por fora), tangerina, jabuticaba, manga, tamarindo, cana, amora... precisa mais? Entre um jogo de bola de gude e um voo de capitão marvel, passara horas comendo ou chupando frutas no quintal. Impossível delícias melhores.

Na época certa, fui encaminhado à escola. Minha primeira escola foi o Jardim da Infância, nome da escola que hoje conhecemos como "prezinho" ou como escola de educação infantil. Embora o nome fosse lindo, a escola não era exatamente um jardim. Éramos matriculados nessa escola para sermos "preparados" para a escola propriamente dita, o que hoje conhecemos como ensino fundamental. E éramos preparados a qualquer custo para a iniciação da alfabetização, por exemplo. Tanto que eu, canhoto, por nascimento, fui forçado a lidar com as primeiras letras e palavras com a mão direita. Não morri por isso, mas guardo a marca dessa barra forçada na escrita irregular até hoje. E a situação estranha de escrever com a mão direita e jogar futebol com a perna esquerda.

Depois do Jardim da Infância, fui para o Grupo Escolar, nome da escola da época, que recebia as crianças para as quatro primeiras séries do "grupo escolar", antes do ginásio. Tenho muitas lembranças desses quatro anos, de algumas professoras bonitas e das irmãs Lucas, afamadas professoras da cidade, Norma e Noêmia. Firmes, sérias, mas carinhosas e competentes. Adorei ter sido aluno delas. Qualquer dia desses penso em escrever mais sobre minhas lembranças do grupo escolar. Das lousas escuras e pouco cuidadas, onde o giz fazia força para ser legível, das canetas de bico de pena , os tinteiros e os mata-borrões. Os cadernos que as professoras tinham consigo, chamados diários, onde estavam as aulas todas, dia por dia, que elas passavam na lousa e nós, diligentemente, copiávamos em nossos cadernos de brochura. Hoje relato apenas duas dessas lembranças. A primeira, no quarto ano, minha primeira paixão, aos dez anos. Uma das meninas da classe, quase loira, filha de família abastada do centro da cidade, Meire, foi quem me despertou aquele sentimento até então desconhecido e inexplicável de se interessar por outra pessoa. Não via a hora de ir para a escola para ver a Meire. Ela correspondia aos meus olhares, mas nunca tive nenhuma certeza sobre o que seu olhar significava. E isso não foi longe porque depois, no ginásio, nós nos desencontramos. Uma lembrança apagada me diz que ela mudou de cidade ou foi estudar em outra cidade, morando na casa de parentes. Perdi a Meire para sempre.

A segunda lembrança, já então estudando no ginásio (hoje, essas séries todas estão juntas no que chamamos de ensino fundamental), na primeira série do ginásio, algo equivalente ao sexto ano de nossas atuais escolas, vivi a primeira e desastrosa experiência com leitura de livros. Não me lembro de, até aquela época, ter tido contato com livros de leitura. As lições no grupo escolar eram escritas na lousa e copiadas por nós nos cadernos. Não me lembro de leitura feita em classe pelas professoras, de tal forma que livro, livro mesmo, eu só vim a conhecer na primeira série do ginásio. E da forma mais desastrosa possível. Era comum na época, um bom professor de língua portuguesa recomendar livros para a leitura "extra-classe". O nosso ótimo professor, sem pestanejar, lascou logo a leitura – obrigatória – do livro Iracema, de José de Alencar, grande mestre das letras brasileiras. Minha leitura das primeiras frases do livro foi um desastre: eu não entendia nada de nada, eu não sabia para que servia aquilo, eu me perdia nas metáforas de Alencar e os lábios virgens de Iracema eram o enigma maior de todos. Nem um precário dicionário me ajudou, pois os significados do dicionário nem sempre correspondiam à intenção de escrita do nosso prezado escritor. Tortura total para um moleque de pouco mais de dez anos, acostumado aos voos imaginários, às frutas que se ofereciam para o deleite, às brincadeiras de rua...

Depois desse trauma, sobrevivi e consegui, lá pelos idos dos treze anos, já no final do ginásio, encontrar o prazer pela leitura, vindo pelas mãos de um livro do amado Jorge Amado.

Mas isto é outra história.

 
     
 

O ESTILINGUE E OUTRAS CONVERSAS DESARMADAS

Peço desculpas ao leitor por começar estes escritos sem a clareza necessária do que aqui vou escrever, no que diz respeito ao gênero do texto. Ou seja, aos gloriosos estudiosos dessa matéria do conhecimento, digo que não sei se este texto é uma narrativa, uma crônica, uma reflexão ou uma dissertação. Que posso fazer? Perdoem-me pela sinceridade. Quero apenas escrever. O que vai sair do meu pensamento e do teclado do computador será mera obra da vontade de escrever, sem nenhuma preocupação em qualificar o gênero textual do que escreverei.

Pois bem... deixei minha memória retroagir, voltar aos anos de minha deliciosa infância, nos tempos em que, menino, era morador de uma chácara, de onde tirávamos o sustento da família (escrevi "tirávamos" porque ajudei muito meu pai na tarefa de vender produtos da chácara ou com eles fazer os escambos para a obtenção de outras coisas que não tínhamos e precisávamos). Dinheiro vivo, conta em banco, uso de cheques... isso era coisa para poucos. Mas não é sobre a economia quase informal que quero memorializar. É sobre os rituais de iniciação da pré-juventude.

Pouco se fala – e muito menos se escreve – sobre os rituais impostos pelos meninos mais velhos aos meninos mais novos, quando estes começam a deixar para trás a infância. Um deles, entre tantos outros, era a obrigação de se construir um estilingue próprio e com ele matar passarinhos. É provável que a criançada de hoje, perdidamente apaixonada pelas coisas da tecnologia, não tenha a menor idéia do que seja um estilingue, até porque a nossa literatura para crianças está muito distante disse, focando quase que exclusivamente o cotidiano urbano. Mas como estou a escrever de uma infância distante mais ou menos uns cinqüenta anos, o estilingue tem papel protagonista. Pois bem... ninguém dava estilingue para o outro, por mais amigo que fosse. Menino de verdade tinha que ralar muita procura, vasculhar muitos pomares, muitos arvoredos e queimar muito chão até achar uma forquilha adequada, bem formada, simétrica e firme o bastante para sustentar as duas tiras de borracha de câmara de ar de pneu de carro e o couro que servia de suporte do apoio da pedra. E bem lembrado: borracha de câmara de ar de pneu de bicicleta não servia. Era muito fina, arrebentava logo, não dava firmeza e com freqüência induzia ao erro no tiro. Quantos galhos produtivos de boas árvores poderiam ter vida mais longa não fosse uma faca ou facão, quase sempre pouco afiada ou afiado, que cortava o galho escolhido para servir de forquilha. E o trabalho continuava: desfolhamento, raspagem e alisamento, corte no tamanho preciso e entalhe preparativo das cunhas em que as tiras de borracha seriam amarradas. O melhor mesmo era uma forquilha feita de um galho seco encontrado perdido em algum lugar. A madeira seca encurtava o tempo e o trabalho da preparação e dava a certeza e que era madeira boa, firme, sólida, já definida em sua utilidade.

Galho para uma boa forquilha os meninos até encontravam. Dava trabalho, mas encontravam. O duro mesmo era encontrar pedaços de câmara de ar de pneu, geralmente de caminhões, que pudessem fornecer a outra matéria prima: o elástico que permitia atirar longe uma pedra, uma bolinha de gude. Os caminhões e os carros não eram tantos, não andavam muito e por isso as câmaras de ar eram objetos raros. Raríssimos ainda mais nas mãos dos meninos. Mas... vez ou outra era possível encontrar um bom pedaço desse artigo de primeiríssima dando sopa e com ele construirmos o tão sonhado estilingue, a primeira e verdadeira arma letal que um ser humano do sexo masculino teria em mãos, com a permissão da sociedade. Aos olhos adultos, matar passarinhos com estilingue não passava de uma inocente brincadeira. Brincadeira para os meninos, já que os passarinhos eram vítimas das pedradas.

Estilingue feito, era só pendurá-lo no pescoço e sair andando nos caminhos da cidade, da vila, do bairro, exibindo a poderosa e permitida arma no peito. E a cada passarinho atingido, uma marca era feita na forquilha, à moda dos matadores profissionais, como se nas forquilhas pudesse ser lido: veja como eu sou um grande matador de passarinhos. Como se isso fosse o passaporte para a juventude. Que culpa os passarinhos tinham dessa necessidade de os humanos se mostrarem desde pequenos matadores de animais? Nunca ninguém me disse. A rigor nunca perguntei a ninguém. Só agora pergunto, já com essas lembranças quase sumidas, tanto quanto essa prática.

Lembro-me (ou me lembro?) que fui um exímio encontrador de boas forquilhas, mas um péssimo atirador de estilingue. Estilingues, tive vários, sempre bem feitos. Por alguma razão de que não me recordo, meu pai sempre conseguia pedaços de câmaras de pneu das quais eu me servia e servia uma parcela pequena de amigos. Apesar dos bons estilingues, meus tiros nunca foram bons. E quase nunca acertei os passarinhos. Hoje, e tão somente hoje, a propósito destes escritos, penso que errava de propósito, porque não tinha resposta para a matança dos bichos. Às vezes era a rapidez do pássaro, que voava antes da chegada da minha pedra; outras vezes era o tiro mal preparado ou atrapalhado por força das folhas de árvores entre a pedra e o passarinho. Errava quase sempre. Talvez porque soubesse a razão dos erros, nunca me senti mal ou nunca me vi como menos menino que os demais. E na falta de vítimas, às escondidas, eu entalhava marcas na forquilha para marcar minha iniciação. Só uma vez acertei um pobre pardal, bicho tão frágil que nunca me fizera mal nenhum e recebera uma pedrada do meu estilingue. Errei o tiro e acertei sem querer o pobre bicho de asas. A tristeza só não foi muito grande pois tão logo se recobrou do susto e da pancada, o pardal levantou voo, meio trôpego, mas salvando-se para bem longe. Depois dessa vez fiz muita força para nunca mais acertar o alvo. Sobrevivi e os passarinhos também.

Volto a pensar, diante da tela silenciosa e cúmplice do computador, com meus botões, sobre essa mania que os humanos temos de impor e viver ritos de iniciação. Por acaso me lembrei do glorioso estilingue, mas poderia lembrar de tantos outros a que somos submetidos ao longo da vida, para provarmos que somos mais homem ou simplesmente para provar que somos homem. De onde teria vindo isso? Dos primórdios da civilização? Do prazer sádico de uns sobre outros? Da necessidade de se mostrar capaz disso ou daquilo? Certamente há explicações para isso e estudiosos dispostos a nos convencer de suas versões.

Interessante como essas desnecessidades acabam gerando traumas em nossas histórias de vida e pequenas manchas de vergonha nas lembranças. Espero com esses registros, marcar na forquilha de um estilingue inexistente minha vingança contra essas bobagens e... desejo ardentemente que o pardal acidentalmente acertado por mim há uns bons cinqüenta anos atrás tenha sobrevivido e se transformado num encantador de humanos, exímio contador de histórias de ninar marmanjos.

 
     
 

JOVENS TARDES DE DOMINGO

O tempo vai longe. Tão longe que as lembranças se misturam, conectam-se, atrapalham-se. Algumas, mais lúcidas, se apresentam e marcam presença na memória. Dizem presente. Como bem lembrou e escreveu Gabriel Garcia Márquez "a vida que a gente tem é a vida que se lembra para contar", na introdução do seu livro de memórias Viver para Contar.

Pois bem. Puxo pela memória a vida que tive e a lembrança vai me trazendo aos poucos meus tempos de infância, na cidade mais que pequena, o almoço comedido e esperado de domingo, a divisão milimétrica pelas bordas do copo do refrigerante doce de maçã, os lábios lambidos pela língua molhada com o molho de tomate do macarrão.

Depois do almoço, não tinha a Turma do Didi, porque televisão não tinha não, um certo tempo de espera, em meio às sombras domingueiras e acomodadas das muitas árvores frutíferas do quintal da chácara onde morava, seguido de um banho no chuveiro improvisado, sem cobertura, com a água caindo morna e lavando a poeira que invadia a casa da família erguida quase à beira da rua sem asfalto, sem calçamento, imersa na terra marrom escura.

Depois do banho, a roupa limpa, lavada e clareada em curtição solar, de fazer dó, roupa de sair, de domingo, de passear (costume que carrego feito raiz fincada profundamente até hoje: tenho roupa de trabalho e roupa de passear, de sair, de visitar amigos, de comer fora, de viajar). O corpo de moleque magrelo e também curtido pelo sol aceitava o esforço de passar pelo ritual, pois o que vinha pela frente era muito bom, muito mais que bom, era essencial para enfrentar a semana que viria pela frente.
Sem medo do sol ainda teimoso, lá ia eu no meio início da tarde de domingo, ladeira acima, pela rua esburacada e empoeirada, desviando de algum cachorro recalcitrante, a caminho da praça central da cidade, onde ficava o imponente prédio do Cine Granada. Levava no peito a ansiedade da espera e no rosto algumas gotas de suor. Levava no andar garboso o orgulho de ser um dos poucos meninos da periferia da cidade que se aventurava, com o exato valor do ingresso no bolso, nas trilhas da sessão de cinema conhecida por matinê. Nem era assim que se escrevia. Mas nem me lembro de qual adaptação linguística era feita na palavra francesa, com dois "es" e com certo abuso de acentos, peculiar daquela língua. Às vezes tinha uns trocos a mais, que permitia a compra de duas ou três unidades da bala "piper", dos "dadinhos dizzioli" ou da bala "toffee". O bombom "sonho de valsa", nem pensar... o chocolate "diamante negro", ó céus... Apesar dessas limitações, poder ir à matinê era algo muito maior do que ver e lamber com a testa aquelas gostosuras.

Na entrada do cinema, todas as etapas do ritual eram majestosamente cumpridas: chegar antes e ver os cartazes do filme a ser exibido, trocar poucas palavras com algum conhecido, compor a fila, trocar o dinheiro pelo ingresso, apresentar o ingresso na porta de entrada e... entrar, glória suprema.

Já dentro do cinema, depois da cortinas de tecido vermelho e grosso, uma enorme rampa com fileiras de assentos dobráveis de madeira nobre, nos aguardava. Aos poucos, aqui e ali, uma a uma, as vagas eram preenchidas com os lugares no centro da rampa ocupados mais rapidamente. Enquanto aguardávamos o início da sessão, sempre após o escurecimento paulatino do salão, o vozerio era um entusiasmo só, misturado aos cheiros e aromas das balas, dropps e chocolates, que alguns faziam questão de mastigar com a boca aberta. O último sinal era dado pela música tema do filme "Amores Clandestinos". Começava a melodia, as luzes se apagavam e a tela dava os primeiros sinais de que o paraíso abria as portas.

E então, num passe de mágica, num clique vitorioso, o maravilhamento começava: Mazzaropi, Tarzan, Marcelino Pão e Vinho...Zorro, Capitão Marvel...

E a vida começava e acabava por ali mesmo, num espaço de cerca de duas horas, no escurinho do cinema, nas matinês das jovens tardes de domingo.

 
     
 

TEMPOS GINASIAIS E A JAQUEIRA NO QUINTAL

Voltemos tempos atrás, lá nos idos do final da década de cinqüenta e início da década de sessenta. Faço um corte no tempo e me vejo um menino de dez anos, terminando o curso primário (séries iniciais do ensino fundamental), e “empurrado” por um primo mais estudado para um tal exame de admissão. Já falei disso outras vezes. Naquela época, os pobres que terminavam o curso primário deviam se dar por satisfeitos e parar por ali. A divisão era proposital: pobres iam até o ensino primário (os que conseguiam) e o ensino ginasial era para os de famílias mais abastadas, remediadas ou ricas. Essa foi a primeira mudança de script na minha vida (daí que sempre acreditei que o destino quem faz somos nós, para um lado ou para o outro): eu estava programado para terminar o ensino primário, arrumar um trabalho para ajudar em casa e... me contentar com isso. Mas, como disse antes, um primo mais estudado  me empurrou para o tal exame de admissão, uma espécie de prova para testar meus conhecimentos, para verificar se eu tinha condições de seguir os estudos ou... para me reprovar mesmo. Desobedeci ao script original e passei no tal exame. Entrei, assim, meio pela porta dos fundos, no ensino ginasial (o que hoje chamamos de anos finais do ensino fundamental).

Comecei a estudar no ginásio, na primeira série do ginásio, tomando contato pela primeira vez com professores diferentes para matérias diferentes. Algumas dessas matérias eu não entendia absolutamente nada, como Latim, uma língua que não se fala mais ( a não ser nas missas católicas). Uniforme novo, camiseta branca com o logotipo da escola bordado no bolso, calça comprida de brim cor cáqui e sapatos. Além do cabelo penteado e dos cadernos. Eu era um dos poucos, da periferia da cidade, que ia, de manhãzinha, para a escola. E ia com orgulho, apesar do lanche muito simples que minha mãe colocava na bolsa, pois a escola tinha o nome de um tio meu: Ginásio Estadual Francisco Marques Pinto.

Uma das experiências mais dolorosas por que passei no ginásio foi ter que ler, logo no primeiro semestre letivo, um livro de literatura indicado pelo professor de Língua Portuguesa: Iracema de José de Alencar. Eu nunca tinha visto livro de literatura antes em minha vida. No curso primário as histórias eram contadas ou lidas pelas professoras ou escritas na lousa. Ao descobrir que existia um tal livro de leitura “extra-classe” fui ver que bicho era esse. Entendi qual era a dinâmica proposta pelo professor: tinha que ler o livro para depois fazer uma prova, respondendo perguntas. Assim mesmo: no talo, no seco, no pau. Arrumei o livro, emprestado não sei de quem, e comecei a viver minha primeira experiência (desastrosa) de leitura de literatura. Não entendia nada do que lia. Iracema, a virgem dos lábios de mel, era uma coisa confusa, estranha, desconhecida. Para mim, Iracema era a mulher de um farmacêutico da cidade, virgem era a imagem santa na igreja e mel era o delicioso produto das abelhas. Agora, virgem dos lábios de mel poderia ser qualquer coisa para mim, um menino de menos de onze anos, com experiência de vida reduzida às ruas da periferia da cidade. Nem o dicionário me ajudou, já que os verbetes eram técnicos demais e mais me confundiam. Nem tinha quem pudesse me ajudar: meus pais eram semialfabetizados, eles mal tinham terminado o ensino primário. Desastre total. Por muito pouco não fui batizado contra a leitura para o resto da vida. Mais uma vez fugi do script. Consegui me safar dessas leituras, sem maiores prejuízos e fui caminhando até o penúltimo ano do ensino ginasial, quando descobri na sala abandonada e permanentemente fechada, pretensamente chamada de biblioteca, mas que servia de depósito de livros e revistas, um livro chamado Capitães d’Areia, do escritor baiano Jorge Amado. Li e me encantei com a figura do Pedro Bala. E nunca mais tirei a leitura da minha vida (e por extensão, a escrita também).

É provável que a experiência diária, na boca da noite, quase todas as noites, de nos reunirmos para ouvir os “causos” contados pelo Seo Zequinha, tenha ajudado nessa superação. Ouvir as histórias contados por aquele matuto, que trabalhava o dia todo na roça e ainda voltava com ânimo para contar histórias para os amigos do filho, fez parte do maravilhamento de minha infância e adolescência. Sentado no degrau da porta, diante da calçada toscamente cimentada, onde nos acomodávamos, puxando um pito de cigarro de palha, ele contava uma, duas, três... muitas histórias de medo, terror, assombração. Foi daí, como já disse em outras oportunidades, que retirei inspiração e motes para escrever as minhas histórias de terror, publicadas no livro Sete Gritos de Terror e no livro inédito Pequenos Sustos. Inesquecível.

Foram anos deliciosos estes tempos ginasiais: novos amigos, meninas bonitas por quem me apaixonei sucessivamente, sem que nenhuma delas soubesse, descobertas novas, muitas, inclusive a sexualidade. E gostava de ser o único, por muito tempo, no pedacinho da periferia onde morava, a freqüentar o ginásio. Me dava um certo ar de importância.

Este período de minha vida foi marcado também pela lembrança eternamente gostosa da chácara onde passei a infância e os anos iniciais da juventude. Tínhamos uma chácara grande, de onde tirávamos o sustento da família. Digo tirávamos por que eu também era  responsável por isso, ajudando meu pai nas atividades da chácara que nos davam algum rendimento. Era uma época de muito escambo, pois o dinheiro não circulava tanto. Trocávamos muitas coisas por outras. Minha mãe, por exemplo, costurava, sem nunca ter aprendido corte e costura profissionalmente, em troca de alimentos plantados e colhidos por sitiantes. A confecção de um vestido, por exemplo, poderia valer cinco quilos de arroz e um frango...

A chácara tinha quase todas as árvores frutíferas que conheci na vida. Desde o pé de tamarindo, enorme, de pequenas folhas verdes delicadas, fazendo uma sombra deliciosa na área externa da casa em que morávamos,  até o imenso pé de jaca, do alto de seus mais de trinta metros fornecendo uma sombra abundante e maravilhosa, além, claro, de fornecer, na época da produção de frutas, mais de duas centenas de jacas. Nem todo mundo gosta de jaca, pelo aroma forte. É uma das minhas preferidas, talvez pelo formato inusitado: uma verdadeira obra arquitetônica da natureza.

Morei na chácara até os quinze anos. Mudamos da chácara para o centro da cidade, em uma bela casa, onde moravam meus avós paternos. Período difícil para mim: entrando na adolescência, mudando de geografia na cidade e indo morar numa casa que acabara de ver uma pessoa morta, meu avô. Paralelamente a isso, o país passou pelo golpe militar e início da ditadura.

Tive uma infância e pré-adolescência maravilhosas na periferia da cidade. Bons tempos. Os anos seguintes também o foram. Descobertas, vivências, novos amigos, outras histórias. Outros tempos.
 
     
 

TEMPOS DO JORNAL A TRIBUNA E DA RÁDIO CULTURA

Em Nova Granada, nos idos dos anos finais da década de sessenta, tinha apenas um jornal, chamado A TRIBUNA. Não dava para chamar de jornal, propriamente dito, como conhecemos os jornais hoje. Era uma publicação semanal, publicada sempre aos domingos, com a maioria de suas quatro páginas ocupada por editais da prefeitura local. Sobrava pouco espaço para outros assuntos.
Um dia, eu que já tinha descoberto o prazer de escrever, me enchi de coragem e lá fui oferecer minha colaboração para o dono do jornal. Disse-lhe que gostaria de escrever uma coluna semanal sobre assuntos da cidade. Ele me olhou, ouviu, deu um sorriso e... topou. Talvez porque fosse um serviço gratuito. Ou talvez porque estava escrito nas estrelas que ali, naquele ano do final da década de sessenta, eu começaria minha carreira de escritor.

Foram muitos anos escrevendo a coluna chamada TOP. Os assuntos eram variados e curtos. Escrevia sobre a cidade, sobre pessoas influentes, sobre rumos do município, sobre juventude, eventos, aniversários, festas, etc. Cabia tudo, sempre com bom humor e seriedade, sem ofender, sem mentir, sem provocar. Notícias apenas. Adorava levantar aos domingos e ver meu nome escrito logo abaixo da palavra TOP destacada. E gostava muito de ver as pessoas da cidade lendo as coisas que eu escrevia. Foi a primeira vez na vida que entendi a importância da escrita. O que está escrito fica, tem vida própria, é concreto, não se apaga. Escreveu: está escrito para sempre. E nem adianta dizer depois “esqueçam o que eu escrevi” porque ninguém esquecerá.
Em 1970, quando já estava formado em Pedagogia, pela UNESP de São José do Rio Preto, de malas prontas para vir para São Paulo, fechei o ciclo com a edição de uma revista com as principais matérias e assuntos do ano e algumas de anos anteriores. Não tenho comigo um exemplar dessa revista. Perdi o único exemplar em alguma mudança de casa ao longo da vida. De autor da coluna semanal no jornal da cidade me atrevi a escrever poemas. Não tenho comigo esses primeiros.

É também dessa época outra experiência deliciosa que tive: locutor de emissora de Rádio. Certo dia apareceu por lá o Padre Miguel Lucas, para ser o pároco da igreja local. Padre Miguel, recém-chegado da Espanha, da Província de Bilbao, falando uma mistura estranha de portunhol, levou ideias interessantíssimas para a cidade, além de sua simpatia e dinamismo ( jovem e bonito, diziam as beatas e fieis). Uma de suas ideias pra lá de maluquinhas foi instalar um aparelho retransmissor de ondas sonoras na Casa Paroquial. Aquilo era um alto-falante com potência de transmitir para os rádios que todos tinham em casa. Ou seja, numa época em que, além de cartas e telegramas, o rádio era o único veículo de comunicação, ter uma emissora de rádio na cidade foi revolucionário. Entramos de cabeça na onda. Um grupo de oito ou nove jovens, entre quinze e vinte anos, resolveu apostar na ideia do padre e botar a rádio para funcionar. Criávamos programas, escolhíamos a trilha sonora, comprávamos discos (ainda não havia CDs nem pendrives) e fazíamos a locução. Eu fui um desses jovens. Criei vários programas e fiz locução de outros tantos. Um deles, era a Grande Parada, programa diário das seis e meia da tarde até às sete da noite, com a execução das seis músicas mais pedidas do dia. Passava muitas horas do dia lá, criando, cobrindo faltas, escrevendo textos de propaganda, ouvindo músicas. Foi nesse período que conheci e me apaixonei pelos Beatles, o maior grupo vocal de todos os tempos, e pela Jovem Guarda, tendo à frente Roberto e Erasmo Carlos. Meu gosto musical sempre foi uma salada eclética, uma mistureira danada, por uma razão muito simples: ouvia todo tipo de música, pois a rádio tinha programas variados para todos os gostos musicais. Da música sertaneja, aos bolerões, passando pela emergente música jovem, conhecida entre nós por iê-iê-iê.  Foi uma época deliciosa. Eu era apaixonado por essa emissora. Durante muito tempo na vida me imaginei um profissional de rádio. Quando cheguei em São Paulo, embora fosse professor formado, tinha um sonho de ser locutor de uma grande emissora na capital. Sonho que não virou...

À noite, para completar a rodada musical, eu era um dos locutores do Serviço de Alto-Falante da cidade. Sabe o que é isso? Um alto-falante, bem grande, preso no alto de um poste, em lugar alto da cidade, ligado por um fio elétrico até uma saleta onde havia um transmissor. Do microfone, da saleta, falávamos as notícias, as propagandas das lojas comerciais da cidade, anunciávamos eventos e tocávamos músicas, atuais, quase sempre a pedido de alguém. Do alto-falante, o vento se encarregava de levar os sons para lugares distantes da cidade. Tínhamos lá um programinha que era para alguém oferecer música para outra pessoa, geralmente namorados ou paqueradores recentes. Às vezes por falta de gente para pedir, eu inventava pedidos. Outras vezes inventava e colocava nomes reais de amigos e amigas conhecidos. Com essa provocação, eu fui responsável por pelo menos uns quatro namoros novos. Desses, um deles deu em casamento.

No final da década, em 1970, ano do tricampeonato mundial de futebol, fiz minhas últimas intervenções na rádio, no alto-falante e no jornal. Depois, tomei rumo para São Paulo, onde moro até hoje.

 
     
 

NA UNIVERSIDADE, APRENDENDO A SER GENTE

Com pouco mais de dezenove anos, a barba ralíssima, que me rendeu o apelido incômodo de BR (barba rala), lá fui eu para a Universidade, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, hoje UNESP, de São José do Rio Preto. Aliás quase todos os apelidos são incômodos, eu descobri, quando ganhei o meu. Justo eu que tinha sido o rei dos apelidos nos meus tempos de infância e juventude. Ninguém escapava. Continuei assim inventando apelidos, pela vida afora, mas depois de sofrer as dores de um apelido pouco apreciável girei minha criatividade para uma lista de apelidos carinhosos.

Eu ainda era um molecão, com a vida vivida nas cercanias de Nova Granada, um perímetro urbano pequeno onde viviam cerca de cinco mil almas. São José do Rio Preto, onde ficava a faculdade, já era uma cidade grande, um centro moderno, vibrante e movimentado, como hoje, uma espécie de capital para nós. Não cheguei a morar em Rio Preto nos anos em que cursei a faculdade, curso de Pedagogia, pois não tinha recursos para isso. Viajávamos, eu e mais três colegas, todos os dias. Íamos de manhã, assistíamos aulas, fazíamos alguns encontros para trabalhos em grupo, e voltávamos para Nova Granada. Eu particularmente não tinha ajuda nenhuma e tinha dificuldades até para comprar os passes escolares para a viagem de ônibus de ida e volta. Por isso, não raro, eu e um dos colegas íamos para a saída da cidade e ali ficávamos à espera de uma carona para ir ou para voltar. Quantas vezes cheguei de volta em Nova Granada lá pelas quatro horas da tarde, morto de fome, sem almoçar. Sobrevivi. Muita gente já nos conhecia e dava a carona sem maiores problemas. Onde andará Pedro Roberto Piloni, meu amigo dessas caronas e do curso?

Foram tempos deliciosos. Eu tinha uma vida quase dupla. Feito o milionário Bruce Wayne e sua identidade de Batmam. Em Rio Preto, era o estudante mais ou menos aplicado do curso, comprometido com novas idéias, com a luta estudantil contra a ditadura, com a realidade do país; em Nova Granada, vestia minha roupa de alienado, descomprometido com questões políticas, preocupado em escrever minha coluna no jornal, trabalhar na rádio e dar umas aulinhas para ter alguns trocos para os bailes, as festas, os namoricos. Eu parecia duas pessoas diferentes. E gostava das duas vidas. Da molecagem educada da cidade pequena e da aprendizagem na cidade grande. Em Rio Preto aprendendo a ser gente grande, pensar, planejar o futuro, refletir. Em Nova Granada, o compromisso quase nenhum, a alegria da conversa fiada com os amigos, o futuro distante, o conforto da casa paterna. Vivíamos o ano de 1968, um dos mais pesados na história recente do país, a ditadura comendo solta e eu nesse vai-e-vem, feito uma personagem que de dia é gata borralheira e de noite é Cinderela. Gostava disso.

Tive amigas incríveis na universidade. Incríveis em vários sentidos: maduras, inteligentes, bonitas, amigas do peito. Dentre elas, a Amparo, a Maria Nilda, as duas Augustas, a Jean Meiri, a Elza, a Muni, Heloísa, a Anadir, a Lulu, a Neusa de Mirassol, a Silvia de Itápolis... Delas, a única que tenho contato eventual é a Muni, apelido da Maria de Jesus Gibertoni, que mora e trabalha em Santa Adélia, município paulista. Adorava essas meninas todas, do fundo do meu coração, mas acho que  nunca souberam de minha paixão por elas. Amei todas, cada uma de uma vez, em épocas diferentes. Foi com um  grupo delas, meninas que viviam em uma república feminina, que tive a minha experiência mais incrível para aqueles tempos. Para aqueles tempos, bem entendido. Tivemos que fazer um trabalho em grupo e o tempo andou depressa demais. A noite chegou, o último ônibus foi embora e eu fiquei por lá. Não tinha dinheiro para dormir em hotel e...a única saída foi dormir na casa delas, na república feminina, no lugar de maior concentração de moças bonitas por metro quadrado. Imaginem: um cara de uma cidade pequena, daquelas que até pra namorar os cuidados eram tantos e o respeito maior ainda, se vê de repente tendo que dormir numa república de meninas. O Bolinha no clube das Luluzinhas. Eu não dormi a noite inteira, com a cabeça a mil, imaginando muitas coisas. Mas... nada aconteceu. Elas dormiram e eu fiquei acordado. Acho que esta foi a maior descoberta daqueles meus tempos: como a vida podia ser múltipla e diferente. E gostosa.

Foi nesse tempo que vivi minhas primeiras reuniões como militante de alguma causa. Militar por alguma causa significa lutar por um ideal, por alguma coisa que se acredita como importante no seu tempo de vida. Pois foi nos meus tempos de universitário, nessa primeira jornada, que me interessei pelo movimento estudantil, pela luta dos estudantes por condições melhores de vida na sociedade. Havia na escola um forte movimento estudantil por melhorias na própria escola e por melhorias na vida brasileira, de modo geral. Já estávamos em plena ditadura, os atos do governo militar impondo censura, limites e um  cala-a-boca geral. O órgão estudantil nacional – UNE – era organizado, forte, politicamente consciente e tinha presença intensa no panorama nacional. Por isso foi fortemente combatido, com muitos líderes estudantis mortos, presos ou expulsos do país. Em Rio Preto, não era diferente. Foi o meu batismo na política. Comecei ali a minha compreensão dos mecanismos da política e a entender como a política está cotidianamente presente em nossas vidas, querendo ou não, gostando ou não. Levei isso adiante comigo. Por isso sempre fui um profissional atento a tudo, muito além das linhas geográficas do meu trabalho. Militei pela melhoria da escola pública brasileira (valeu???) e assinei a ata de fundação do sindicato dos educadores municipais de São Paulo, hoje, um dos maiores.

Foi também na universidade, na flor dos meus vinte anos, que publiquei um poema meu em uma revista acadêmica que publicava textos dos jovens poetas universitários: Presença Poética. A par dessas escritas, continuava escrevendo, como já disse em outro texto, para o jornal da minha cidade. Esse prazer pela escrita, secundado pelo prazer da leitura, me acompanhavam desde a adolescência, e ainda hoje são presenças garantidas em minhas agendas diárias. Escrevo e leio todos os dias, coisas e assuntos diferentes. A diversidade insinua a criatividade.

Outra lembrança que tenho dessa época é do aparecimento da televisão em minha cidade. Nas cidades maiores, a televisão já era um acontecimento, mas foi somente nos finais dos anos sessenta, abrindo caminho para a década de setenta, que a televisão chegou pra valer em Nova Granada, com o apresentador Sílvio Santos dominando os lares do país todo. Era um sufoco poder assistir alguma coisa, visto que as transmissões eram ruins, feitas por antenas que sofriam interferências do vento e chuva. A sintonia era ruim, cheia de “fantasmas”, imagens em dobro ou em triplo. Fora os “chuviscos”, os milhares de pontos que apareciam na tela desmanchando as imagens. Mesmo assim, vinda para ficar, o big brother entrava nas casas pela porta da sala e ocupava lugar de destaque na convivência. Começava a decadência dos cinemas de bairro, substituídos pelas novelas, no aconchego das casas. 1970, último ano que morei em Nova Granada, já terminando o curso de Pedagogia em Rio Preto, foi definitivo do ponto de vista da fixação da televisão em nossas vidas. Enquanto o pau corria solto na ditadura, a tevê se preparava para alçar voos maiores e conquistar a plenitude dos lares brasileiros, com apoio dos militares de plantão no governo, escondia e omitia a verdadeira política nefasta que se praticava pelos comandantes do poder e em troca oferecia a glória de ver a seleção brasileira de futebol ganhar o tri-campeonato com a explosão do quarteto mágico: Gérson, Pelé, Tostão e Rivelino. Minha casa era uma das poucas que tinha o aparelho de televisão na sala razão pela qual os jogos da copa eram assistidos por grupos de vinte a trinta pessoas.

Um dia esse tempo acabou, passou. Terminei o curso de Pedagogia e tive que tomar uma decisão: o que fazer da minha vida? Como bem perguntava poeticamente Carlos Drummond de Andrade: E agora, José?

E... agora, José?
Arrumei minhas malas, com roupas, dúvidas, tristezas e alguns sonhos e vim para São Paulo, como muita gente do interior e de outros estados fazia naquela época.

Aqui cheguei, no início de 1971. E aqui fiquei. Até hoje.